Aquilo que poderia ter sido mas não foi!

Passado uns dias de um evento de entretenimento que teve lugar no Campo Pequeno em Lisboa dia 22 de Dezembro de 2023, produzido pelo youtuber português Numeiro, com a chancela da Federação Portuguesa de Boxe, em que tive a oportunidade e fiz questão de estar presente, venho manifestar a minha opinião como um agente da modalidade do boxe há mais de 20 anos onde já fui atleta, treinador e dirigente e dado que já li e vi muita coisa referente ao mesmo. Convém esclarecer que me desloquei ao evento para ver um espetáculo de entretenimento que incluía boxe, não uma gala de boxe.

Antes de mais devo enaltecer a coragem, perseverança e atitude deste youtuber que nada tinha a ver com o boxe até então. Primeiramente usufruiu dos ganhos de saúde que esta modalidade proporciona, melhorando o seu estilo de vida e perdendo cerca de 20kg ao praticá-la e com isto desenvolveu uma paixão pelo boxe. Posteriormente conseguiu fazer a nível de produção do evento aquilo que mais ninguém fez em Portugal até ao momento, quanto a questões organizativas e de programa do evento deixa bastante a desejar como analisarei mais à frente.

Conseguiu tal produção por ser já uma pessoa bastante conhecida como youtuber, atraindo um engagement sem precedentes em torno deste espetáculo. Quem assistiu ao evento, pôde usufruir de um momento do melhor que se faz no mundo, o Campo Pequeno parecia Las Vegas. Contou com 7500 pessoas que assistiram fisicamente e teve cerca 300 000 espetadores, algo notável e louvável e até mesmo histórico. Agora importa perceber se o fez com o intuito de promover o boxe nacional ou se o fez apenas para benefício próprio usando o boxe, dado que poderia muito bem convidar atletas nacionais de topo, para poderem disputar combates de boxe com qualidade e mostrar ao público o que de melhor se faz em Portugal.

Existem questões dúbias já explanadas e divulgadas pela comunicação social, como é o caso das apostas ilegais, porque há uma denúncia feita ao Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa pela APAJO (Esta entidade acusa Numeiro de divulgar um site ilegal que permite a inscrição de menores e não possui licença do (SRIJ) que é a entidade responsável pela regulação de jogos e apostas online em Portugal). Seria muito estranho esta questão das apostas ser legal, visto que o boxe nacional não faz parte das apostas online. Há também a questão do concurso do Ferrari que agora tem de comprovar a devolução do dinheiro aos participantes.

O Numeiro, dentro das suas competências técnico táticas, fez o melhor que conseguiu, entregou-se de corpo e alma ao combate e contrariamente à opinião da maioria não pagou para ganhar. Disputaram um combate com a máxima entrega e dedicação, claro está não era expectável uma qualidade técnico tática de outro mundo, pelas mais variadas razões: tempo de treino, inexperiência de combate, comportamento tático, técnicas de defesa e ataque… mas sem dúvida foi uma verdadeira batalha.

No entanto a responsabilidade do que se passou deve-se a quem lhe disse que estava apto para disputar um combate, mesmo contra um atleta profissional com 0 vitorias e 4 derrotas (experiência), devia talvez iniciar o boxe como todas as pessoas o fazem, através do boxe olímpico e posteriormente após adquirir experiência passar a profissional. Só vem comprovar que o boxe não basta desferir golpes não apreendidos em cima do ringue, é necessário muito trabalho, treino, dedicação, experiencia em jogo e muita disciplina para atingir os objetivos, não fosse este um dos desportos mais exigentes do mundo tanto física como psicologicamente.

Dada a experiência no boxe profissional do Numeiro que era zero, estamos a falar de um pugilista de terceira série, ou seja, que realiza o seu primeiro combate e no máximo deveria disputar 4 rounds para sua própria proteção. Abriu-se um precedente que vai contra os regulamentos da modalidade, passar um atleta direto a profissional, saltando todas as etapas previstas no percurso normal de um atleta e previstos em regulamentos institucionais nacionais. Se a federação achar que é assim que se deve proceder então que adapte os regulamentos para todos poderem seguir o mesmo percurso. Ou seja, qualquer um que se candidate pode realizar combates profissionais mesmo sem ter experiência no boxe olímpico, se é para um é para todos à semelhança do que internacionalmente se faz.

Não culpem o atleta, culpem a tutela que chancelou o evento e que em primeiro lugar deveria proteger a integridade física dos atletas (que é isso que se passa na modalidade), não teve a capacidade de perceber o potencial do mesmo e não soube exigir as condições de organização e controlo necessárias à real promoção do boxe português e dos seus interesses. Com uma tutela que perceba de gestão com conhecimento da modalidade, acredito que muitas das falhas não teriam acontecido, assim como muita coisa poderia ter sido evitada. A opinião pública teria sido certamente muito mais vantajosa para o boxe nacional e a própria estrutura federativa deveria exigir a existência de pelo menos mais um ou dois combates entre atletas portugueses que pudessem proporcionar um bom espetáculo, por forma a comunicar a real imagem da modalidade. Ao tutelar e autorizar o evento deveria impor condições para a realização do mesmo.

A federação não deveria permitir também aquele momento de fantochada da simulação de combate entre pessoas portadoras de nanismo, porque ficamos sem perceber se era chacota para o boxe ou para essas mesmas pessoas, quanto a esta última parte senti-me bastante incomodado, porque ao início até pensei que poderia ser o mote para a divulgação e comunicação do desporto adaptado, mas facilmente percebi que não. Não entendi o objetivo deste momento. Talvez usar o boxe como stand up comedy???

A direção de prova não esteve ao nível de tal produção, tempo de rounds e pausas inconstantes, às vezes curtos outras vezes demasiado longos e o combate deveria ter sido terminado muito mais cedo, apesar do árbitro tentar constantemente proteger o atleta português sempre que este se encontrava em dificuldades que a partir do 4 round era bem percetível até mesmo para quem nada percebe de boxe.

Quanto ao combate em si, não vimos boxe de qualidade, vimos um espetáculo à semelhança dos filmes de Hollywood, chegou a momentos que parecia que valia tudo para dar espetáculo, tiveram de ser aficionados da modalidade (incluindo eu) que fizeram pressão para acabar com tal massacre e os próprios juízes chamaram a segurança para impedir de manifestar a nossa vontade e os agentes da federação e a direção de prova nada fizeram para proteger o atleta. Se algo de mais sério ou grave tivesse acontecido pela falta de proteção do atleta a quem seria remetida a responsabilidade (visto que a federação aprovou este combate)?  Onde estavam os responsáveis da Federação? Apenas para aparecer e serem reconhecidos só por estar? Deveriam ser eles a tomar a atitude visto que foram esses mesmos membros que aprovaram tal encontro. Esta aprovação nestes termos e condições foi por falta de conhecimento da modalidade? Dos perigos que representa? Ganhar no plano desportivo e do espetáculo às vezes não é nada.

Uma palavra de força ao Numeiro pela paixão, coragem, perseverança, esperando que este episódio não lhe tire a vontade de continuar a trabalhar em prol do boxe e principalmente que não lhe tenha trazido complicações de saúde esperando também que lhe tenha trazido a consciência do compromisso e dedicação que este desporto exige.

Para concluir, este evento foi uma falácia e um autêntico desperdício de oportunidade para promover o real boxe português… Aquilo que poderia ter sido mas não foi!